Na quinta-feira passada, eu agachei com 92kg no lombo (8 e 6 repetições em cada série) e depois comi meio quilo de uvas Thompson sem semente entre meia-noite e uma da manhã, enquanto minhas gatas caçavam mariposas e eu via a Laura Dern se engraçar com o Liam Hemsworth em um romance água-com-açúcar cheio de vistas do Marrocos.
Não sei se foi a exaustão física, a plenitude estomacal e moral de ter comido APENAS UVAS em vez de amassar duas barras de chocolate, os movimentos bonitos das patas da minha gata mais jovem ou a trívia livresca que apareceu no filme para mostrar como a Laura Dern é mais inteligente do que todos os outros escritores no retiro sem ser arrogante por isso, mas eu decidi que preciso arrumar tempo para escrever e sexta-feira vai ser o dia de colocar um disco, sentar no zafu com um bloquinho de notas e uma xícara de café e *DEICHAR TORAR*.
Aí fiz isso mesmo, sentei na frente do ar condicionado e coloquei vinis do The Clash para rodar, peguei o caderninho de capa lilás da DAISO e cheguei a algumas certezas meio incontornáveis, a uma epígrafe possível e a um clima do romance cujas estruturas começam a ser construídas.
Eu queria ser engraçadinha, mas parece que não consigo escrever sem uma dose esquisita de melancolia.
Ainda tem muito chão pela frente, considerando que estou fazendo as pesquisas para o romance e só tenho duas personagens esboçadas, poucas cenas na cabeça e um arcabouço muito precário, mas preciso deixar torar para que trabalhe essas coisas todas.
E deixar torar envolve esse tempo de vagar, esses minutos de mente absorta, os lampejos que se apresentam diante de uma tigela cheia de uvas sobre as coxas fatigadas.
Envolve ler coisas, e eu li, na semana passada, um romance que andava bem a fim de ler e que encarei com ceticismo depois de comentários de pessoas conhecidas: Creation Lake, da Rachel Kushner. Pensei que essa leitura pudesse servir como algum tipo de pesquisa para o meu romance e acabou que serviu, mas não do jeito que eu tinha antecipado.
O romance finalista do Booker Prize é descrito como a história de Sadie Smith, alcunha de uma espiã infiltrada no movimento eco-terrorista Le Moulin, uma comuna situada numa região rural no sudoeste da França. Para se infiltrar nessa quase seita, ela entra em um relacionamento com o amigo mais antigo do líder do grupo, consegue acesso aos emails do mentor filosófico da seita e começa a planejar a derrocada dessa comuna.
O romance é narrado em primeira pessoa pela espiã, que começa cada capítulo contando emails do mentor, Bruno Lacombe, e suas divagações sobre as propensões artísticas e filosóficas do Homem de Neandertal, sobre a guerra, sobre sua própria trajetória rumo à vida nas cavernas onde os primeiros hominídeos viveram. Entremeados ao enredo mais linear do romance, vêm flashbacks de duas missões anteriores da espiã – desarticulando uma gangue de motocicletas e tentando acabar com um pequeno grupo de ativistas pela causa animal – e comentários quase ensaísticos sobre a Europa, roubos a lojas, dirigir bêbada, comb-overs, pichação, o sentimento de viajar de costas em um trem de alta velocidade, política, citações feitas com os dedos, moda, fogo, classe, cinéfilos, altura de cintos de homens em áreas agrárias, o vestido quintessencial das matronas francesas, notas sensoriais de vinhos, o fato de a terrine parecer comida de gato, como os romances franceses são melhores do que os americanos.
É um livro que observa detalhes minúsculos com perspicácia e ironia, mas vem tingido do ceticismo e da melancolia de uma narradora que vende sua inteligência para desmantelar movimentos sociais anticapitalistas que muitos de nós olham com esperança e admiração: inserida na comuna, a espiã percebe o reforço dos papeis de gênero ao notar que as mulheres cozinham e os homens pensam, que o cuidado comunitários das crianças acaba recaindo sobre suas mães e que existe um certo etarismo que veta a participação de membros mais velhos nas atividades do grupo.
A narradora parece precisar reafirmar o tempo inteiro que é mais inteligente que todo mundo, que está vários passos a frente de todas as pessoas com quem se depara, mas essa atitude trai um desconsolo patente nas últimas páginas do livro, bonitas em sua tentativa de comunhão estelar com a figura fantasmagórica que é criada em contraponto à espiã: o pensador Bruno Lacombe.
Em uma construção em certa medida dialética, Lacombe é trazido à página para falar sobre um tempo em que se acreditava na revolução porque se vivera a guerra e a resistência, para demonstrar os caminhos que os homens podem trilhar paralelamente à hegemonia capitalista, uma antítese delicada à dureza da narradora que fica brilhante no melhor momento do romance: a cena de Bruno criança, encontrando um nazista morto e seu capacete jogado ao lado do corpo. O menino toma o capacete e o usa na volta para a casa da senhora que cuidava dele enquanto seus pais lutavam na resistência (o que os mataria), o sentimento do metal desconfortável sobre sua cabeça e a visão obscurecida conforme corria e o troço se mexia no seu crânio de menino tornando-se a lembrança quintessencial dos dias de guerra, até mais tarde naquela noite, quando ele começa a sentir uma coceira desesperadora e percebe que pegou piolho do nazista morto. Essa coceira, essa visão, o fazem entender o conceito de transmigração e relacioná-lo com nossa composição genética, em um trecho que me deu vertigens:
Bruno said that transmigration, what some called metempsychosis, wasn’t magic in the degraded sense of taking place outside physical laws or as conjured by people draped in wizards’ cloaks. Transmigration, he said, was the entire story of people and their long history, archived as chains of information inside the bodies of every living person. No man was not the product of such a chain. Every human was a child of a child of a child of children of mysterious mothers who once lived, and whose secrets we carry. This was our genome, Bruno said. Science and technology are embattled terrain among those who reject capitalism, he acknowledged, but the new discoveries in the study of ancient DNA were stunning and consequential. They have to be dealt with, Bruno said. (p. 194)
Sabendo de antemão que a premissa desmoronaria ali pelo meio do livro e que o final seria meio decepcionante, li o romance todo no espírito do “DEIXA TORAR” e achei uma delícia. Esperava ansiosa pelas interrupções do enredo, pelos emails de Bruno Lacombe e pelas reminiscências da mulher que não existe, como se definira a narradora ao contar sobre a sedução do francês que possibilitara seu acesso a Le Moulin. Vivi pelos interstícios dos comentários, pela imagem de um quarto tomado por adesivos de bebês caricaturizados (que eu imaginei como os Kewpie Babies pelos quais sou obcecada e que quero tatuar, uma Ruth Castevetes sendo vista pela Rosemary no olho mágico em versão Kewpie é um sonho antigo), pelo caos de uma casa lavada por infiltrações e pelas descrições de árvores e folhas, luar e céu cor de rosa, cervejas formidables e enxaqueca ocular, vozes viajando pelas cavernas através das eras, a estrela Polaris que eu nunca lembrei de ver nas poucas vezes em que estive acima da Linha do Equador.
Fui sentindo o livro e terminei feliz, pensando que quero pensar a escrita do romance que tenho aqui para fazer e levando da obra da Rachel Kushner o que de melhor dela pude tirar: uma falta de reverência pelo gênero, uma confiança de que eu posso quebrar o molde para falar sobre obsessões, um comprometimento com o ritmo das frases. A dialética das personagens eu já disse que vem aí, uma personagem metódica e hiperconectada, uma personagem caótica e hiperanalógica. Foi divertido ver essa construção em Creation Lake.
Acima de tudo, o que levo desse livro é que realmente, quando houver dúvida, eu devo ouvir a voz do caracol que vive dentro do meu ouvido a minha intuição e:
DEIXAR TORAR.
Textinho ótimo para os aspirantes a… amei