#11 Resenhas Breves - "Trilogia de Copenhagen", de Tove Ditlevsen
Uma autobiografia que teria sido o grande livro da minha pré-adolescência
“A infância é longa e estreita feito um caixão e não dá para escapar dela por conta própria.”
Uma autobiografia que tem essa frase nos seus primeiros capítulos jamais poderia me deixar indiferente. Escolhi Trilogia de Copenhagen para ser o primeiro livro dos meus 37 anos depois de pensar em lê-la por meses, desde pelo menos novembro do ano passado, quando li uma resenha na revista Quatro Cinco Um. O volume alaranjado esteve nas prateleiras das duas livrarias sobre as quais eu vivo, em suas vitrines, sempre à mão para quando eu quisesse me demorar nele. Mas eu acabava deixando para depois, olhando para o sorriso da autora com a certeza de que este seria um livro que me agradaria.
Dias antes do meu aniversário, voltando de um treino de membros superiores, Heitor e eu entramos em uma das livrarias e pedimos o livro, que foi resgatado, filho único, da vitrine depois de buscas incessantes em diferentes prateleiras, no estoque, nos embrulhos de encomendas, carregado elevador acima e aberto antes de dormir, na cama, para encontrar essa frase, para ver ler outras, para sopesá-las e cotejá-las, para fruí-las.
É uma autobiografia boa de ler, viva em suas cenas escritas sempre no presente, bonita em sua concisão de prosa urdida por uma poeta e brutal em suas descrições frias. Pude ver a alta Tove perdida entre seus companheiros de rua e de escola, uma criança que escreve versos clandestinos em uma resistência quieta à afirmação de seu pai de que meninas não podem ser poetas, sua ambição de publicá-los, sua mocidade obstinada, seu foco frio em tornar-se escritora e sua voracidade ao consegui-lo, os homens que ora pareciam estorvos, ora anjos auxiliadores, os filhos que quis ter, os abortos que decidiu fazer, as viagens loucas de opioides e a destruição de seu corpo na fissura, o desejo de tirar o grão de areia do olho que parecia ser sua realidade às vezes. É tudo muito claro, como as cores das estações que ela evoca tão bem – e que se perderam na tradução do título da primeira parte da autobiografia, Det tidlige forår que se traduziria como O início da primavera e englobaria “Infância” e “Juventude”.
Aqui, a autobiografia saiu como a história de uma precursora de escritoras como a über-seller Elena Ferrante e a ganhadora do Nobel Annie Ernaux, mas essa venda casada me pareceu anacrônica. Os livros de Ditlevsen foram publicados pela primeira vez em dinamarquês entre os anos 1960 e 1970 e só tiveram edição total em inglês, francês, italiano e português em 2019, 2024, 2022 e 2023, respectivamente. O que acontece, para mim, é justamente o oposto: a publicação de livros que poderiam ser classificados como autoficção, escritos por uma mulher de origens proletárias que conquistou seu espaço em um ambiente literário dominado por homens e escolheu falar com honestidade sobre elementos pertinentes a algo que se poderia chamar de condição feminina – casamento, sexo, maternidade, filhos, o desejo de ser levada a sério etc. – vem na esteira do sucesso de Ferrante e do prestígio de Ernaux, de suas descrições da vida difícil das meninas estudiosas em ambientes de trabalhadores menos “ilustrados”. Parece-me bastante improvável que Ernaux e Ferrante tenham lido Ditlevsen, mas entendo, sim, que há muitas aproximações possíveis entre todas essas escritoras, ainda que as intersecções não sejam totais nem quanto a forma, nem quanto a conteúdo.
Na minha história pessoal da leitura, no entanto, Ditlevsen ocupou um espaço de comparação muito lisonjeiro. Enquanto deitava na cama, me esparramava no sofá ou me trancava no banheiro com essas 388 páginas encadernadas em laranja e marrom, lembrava com imenso prazer de deitar, esparramar e trancar com Eu, Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída, primeira leitura adulta que fiz aos 11 anos, escondida dos meus pais, um livro que roubei das coisas da minha irmã mais velha para acabar perenemente obcecada com David Bowie e imensamente melancólica pela impossibilidade de usar heroína na Praça Coronel Pedro Osório, em Pelotas. Ler reiteradas vezes a palavra “toxicodependente” na autobiografia da dinamarquesa, essa palavra com cheiro de mofo e energia de manual escolar antidrogas dos anos 1970, me levou direto à estação Banhof Zoo. Ver a decadência de Tove, sua decisão de abandonar tudo para poder continuar tomando injeções de petidina (ou demerol, para todos nós fascinados por E.R.) foi como rever as peripécias de Christiane pelas ruas de Berlim, fazendo programa em troca de doses cada vez mais ineficazes de heroína.
Juntar essas duas leituras, em um percurso muito pessoal de vida entre livros, me deu imenso prazer e me fez pensar sobre como é bonito ter a vida entremeada pelos livros que lemos. Gosto de relacionar as coisas que li e de me lembrar dos momentos exatos em que as li, tomando café da tarde e deixando farelos de Folhado Doce da Zezé se acumularem entre as páginas amareladas em 1999, assistindo à maratona das Olimpíadas de Paris com o livro esquecido no regaço, rindo da pronúncia aportuguesada que meu marido deu aos monumentos franceses em 2024, uma vida vivida entre cada livro como o miolo entre as capas.
Como eu suspeitava, gostei imenso da Trilogia de Copenhagen da Tove Ditlevsen. Gostei de ver uma menina que se enxergava como alguém muito diferente, uma jovem que sabia o que queria e trabalhava para alcançá-lo, uma adulta que se entregou a delícias destrutivas e contou tudo com muita honestidade e clareza, o bonito e o feio, a verdelha pousada sobre uma toalha xadrez em um dia de céu ininterruptamente azul e a angústia para tomar comprimidos Butalgin, o desejo da escrita e a negligência de si mesma. As frases lapidares são um prazer, os desafios à ordem dominante um alento. Mas desconfio que esse livro teria sido um evento definidor da minha vida inteira se tivesse sido traduzido para português na época de sua publicação dinamarquesa, se tivesse chegado às minhas mãos perto da Christiane. Ler a vida de uma escritora filha de foguista, com ódio ao nazismo e resistência na Dinamarca ocupada, abortos descritos sem tanto pânico moral e com muito alívio, casamentos e divórcios, romances e poemas publicados, filhos crescendo à revelia enquanto as teclas da máquina de escrever são amassadas sob o efeito de opioides teria sido a experiência quintessencial da pré-adolescente que eu fui.
Quem sabe tivesse tido coragem de ser quem eu já era muitos anos antes, quem eu sempre fui.