Desde o final de setembro de 2023, eu vivo com uma presença no canto do meu olho. É um vulto breve, que some se eu viro o rosto para encará-lo de frente, anda próximo do nível do chão e só irrompe na periferia da minha visão quando estou em casa. Ele não está sempre ali, às vezes aparece e some em várias ocasiões ao longo de um dia, às vezes passa semanas sem se fazer perceber pelos meus sentidos fatigados.
Há poucas semanas eu pensei no que pode ser esse vulto, ou, antes, no que eu quero que ele seja.
Esse vulto é a ausência de Lisboa, minha gata de dez anos que morreu no final de setembro do ano passado depois de um mês vertiginoso de diagnóstico e sofrimento, angústia e carinho, luto antes do luto.
Entre seu emagrecimento brusco, seu enfraquecimento e uma internação em que não se descobriu muita coisa, sua volta à casa ainda sem conseguir engolir, desconfianças de problemas na garganta, uma consulta com a veterinária especializada em odontologia e um diagnóstico tão doloroso quanto inesperado, prognóstico péssimo e recomendações de cuidados paliativos, entre esses pontos díspares unidos por um fio de desespero se passaram vinte e um dias.
Depois, pudemos tê-la nos braços por mais vinte e três. Até a decisão derradeira e a certeza de fazer o melhor pela gata que amávamos há uma década.
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Era maio, era 2013, vivíamos em Porto Alegre no primeiro ano em que moramos juntos oficialmente, num apartamento na Venâncio Aires, entre a João Pessoa e a Lima e Silva, trecho da rua que não alagaria em 2024 quando a Casa de Bombas do Menino Deus fosse desligada e o bairro evacuado, quando amigos tivessem que buscar abrigo alhures, quando Porto Alegre estivesse submersa e Pelotas afundando.
Era sábado, o clima ameno que exigia um blusão leve na ida à feira da Redenção vinha tingido por um sol espalhado em céu claro, as árvores ainda cheias naquele outono morno faziam sombra sobre a José Bonifácio e as bancas dos agricultores, as peças de queijo, os tubos de mel e os vidros de chimia. Compramos folhas para salada, frutas e qualquer outra coisa de que já não consigo lembrar, tomamos o caminho de volta pelo lado do Colégio Militar para caminhar pela Venâncio, mais vazia, mais silenciosa apesar do fluxo dos carros.
Do outro lado da rua, um pet shop com gaiolinhas de animais para doação. Eu já sabia que adotaríamos um gato, inculcara essa ideia na cabeça do Heitor em um momento em que ele tinha medo de gatos, a cabeça endurecida de preconceitos e lugares comuns. Ele também já sabia que adotaríamos um gato, e não resistiu quando eu puxei sua mão e atravessei a rua, quando nos deparamos com um gato preto que, erguido sobre as patas traseiras, fazia passar suas garrinhas pelas grades da gaiola e arranhava, amistosamente, quem passasse por perto. Esse gato furou a sacola de rúcula, mas o Heitor sempre lembra errado dessa história e atribui os rasgos à filhote de três pelos da gaiola da frente, brincalhona mas menos agitada, que tentava engajar uma outra gatinha de outra gaiola dando-lhe patadinhas.
Alguém comentou sobre a beleza dessa filhote, eu pedi para pegar no colo e caímos no golpe.
Lisboa mostrou ser quem era nos primeiros segundos. Aquietou-se e ronronou, cochilou enquanto assinávamos os papeis de adoção, miou um pouco na primeira consulta veterinária logo antes de berrar, esganiçada, ao longo dos quarteirões que separavam a clínica Mundo Pet do Edifício Débora, que vencemos juntas, ela aninhada no meu colo, eu segurando firme. Adaptou-se ao apartamento em cinco minutos, tornou-se dona de tudo em um dia, conquistou o hesitante Heitor e na segunda noite já estava dormindo na cama por sugestão dele – esfriara pela primeira vez no ano, ele achou que seria mais prudente que ela dormisse conosco e a noite em que ela fora deitada no sofá da sala, aninhada em cobertinhas, de frente para a televisão ligada, com o filme Mensagem para você passando, ficara no passado.
Eu fui conquistada no primeiro olhar que trocamos, ela minúscula, a barriga redonda de vermes, o corpo leve contra o meu peito, e continuei inteiramente rendida a ela até a hora em que seu corpo cedeu sobre meus braços, o peso infinito que eu ainda consigo sentir, e seus olhos abertos já não viam mais nada.


Nesse último dia, cinzento e meio chuvoso, embaçado pelo choro e pelo sono e pela estranheza, vencemos os quarteirões que separavam a ClinVet do Condomínio Quinta Avenida com uma caixa de transporte vazia, sozinhos pela primeira vez em dez anos, a leveza perturbadora do plástico sem a presença irascível da gata mais autoconsciente que eu já conhecera na vida, o espaço sempre fadado ao vácuo, o vazio, o vazio de uma vida em que Lisboa já não me acorda às três da manhã para passear pela casa, vê-la comendo grama, dar petiscos ou simplesmente sentar no sofá enquanto ela pega no sono e eu volto, sorrateira, para a cama, em que já não temos uso para as seringas que infestaram a casa durante as últimas semanas e que usamos para alimentá-la e hidrata-la até os dias em que ela já não conseguia engolir quase nada e precisava ser hidratada com soro na clínica, em que não sentimos mais suas patadinhas chamando nossa atenção.
Eu fui conquistada no primeiro olhar.
Eu sei que conquistei também.
Eu estava na mesma luz que tocou suas retinas brilhantes até seu apagar.
Eu sei que o soluço que saiu de mim quando seu corpo pesou em mim não brotará assim nunca mais.
***
(esse é o primeiro de uma série de quatro textos sobre a morte da Lisboa, que serão publicados ao longo do mês de setembro)
Meu Deus me emocionei como se a gata fosse minha..
Chorando aqui. Perdi Ziggy, minha gata de 8 anos, em março de 2023 e foi um dor que ainda volta a doer quando lembro dela.
Adotei dois pestinhas, um bebê e outro jovenzinho. Parece que são pai e filho. Fiz um promessa a Ziggy de que faria outros gatinhos se sentirem tão amados quanto ela foi.
Um beijoooo!!!