Buzinas estridentes decoravam o ar de péssima qualidade da Avenida e eu esperava pelo Uber. Estava escorada na galeria do prédio onde vivo, a privação de sono causando um barato tímido no atraso de processamento visual entre cores e formas, o gosto de antiácido recém mastigado encapsulando minha língua saburrosa, até um ônibus verde-oliva parar no ponto e dele descer uma mulher de salto alto.
Aquela mulher era impossível. Baixa e rechonchuda, vestia roupas baratas de poliéster, carregava uma bolsa de plástico desbotada com o nome de uma rede de supermercados estampado sobre imagens de frutas molhadas e uma sacola de farmácia, usava óculos de grau com armação vinho, tinha mais de cinquenta anos e os cabelos em um corte feio e prático eram tingidos com tintura de caixinha.
E estava perfeitamente equilibrada sobre sandálias de veludo pretas de saltos altíssimos.
Pisava o calçamento português da Avenida com firmeza, a bolsa ridícula de supermercado bem assente no ombro caído, a bermuda preta mal cortada subindo um pouco entre as coxas varicosas, a camiseta listrada marcando a renda do sutiã, os pés metidos nos sapatos mais bonitos da cidade.
Cancelei o Uber e fui atrás dela em meus tênis imundos, tropeçando nos transeuntes com seus chinelos, suas rasteirinhas, seus mocassins, seus Vans. Os pés da mulher andavam em um ritmo vertiginoso, pulavam poças d’água em que eu chafurdava, seguiam um caminho que parecia aberto em um feitiço que o bloqueava para mim, mas eu precisava saber para onde iam aqueles sapatos.
A mulher dobrou na Floriano, passou pela livraria e pelas pastelarias, pelo boteco e pela sapataria, pela loja de quinquilharias e de aparelhos auditivos, pela garagem lateral do prédio onde moro, os sons convulsos do trânsito preenchendo o ar denso das quatro da tarde e eu pude perceber que ela viraria à esquerda e entraria no supermercado.
No mercado, pegou uma garrafa de suco e um saco de médias, duzentos gramas de presunto e dois tomates, e eu fiquei perdida na banalidade de tudo. A luz fluorescente, os pacotes de macarrão instantâneo, os uniformes vermelhos dos atendentes, os idosos que atravancam os corredores apertados com sua lentidão de mamutes desextintos e aquela mulher estranha, de roupas comuns e sapatos extraordinários, as veias pulsantes das pernas de meia-idade descendo como filigranas até o paroxismo dos tornozelos engatados em dourado, calcanhares macios e unhas pintadas com a imemorial mistura Gabriela e Rebu, varizes azuis como azulejos tatuados na palidez de porcelana, e os quadris se viram na direção do corredor de bebidas.
O que eu estou fazendo atrás dessa mulher, pego um bolo e uma lata de coca zero para parecer que fui ao mercado apenas garantir um lanchinho da tarde, para não dar na cara que estou matando a terapia para seguir um par de sapatos incongruentes, e ando atrás dela como se fosse mesmo perguntar o que quero saber enquanto ela pesca um conhaque Dreher da prateleira, olha direto na minha cara e pergunta se me conhece de algum lugar.
Eu respondo que não, fico vermelha e gaguejo. O que é que eu estava esperando? O que é que eu estava fazendo? Só porque ela anda com roupas bagaceiras e um sapato chique eu saio do rumo da minha vida de novo e vou andar atrás de uma completa estranha de novo, sem nenhuma intenção de realmente perguntar nada, só seguindo o tactac dos passos na pedra, as volutas impossíveis das varizes, os reflexos acaju nos cabelos porosos?
Ela paga, eu pago, ela sai e eu continuo olhando para ela porque percebo que ela não me nota. Antes de atravessar a rua, ela abre a garrafa de conhaque, joga uma dose imensa no chão sujo e nós duas, em uníssono, murmuramos “para o Santo!”
Ela bebe um gole imenso do conhaque ruim.
Eu continuo incógnita no movimento intenso do café da tarde.
Ela bebe mais alguns segundos.
Eu continuo olhando para aquela figura disforme.
Um morador de rua passa entre nós e pede dinheiro.
Ela dá a garrafa de conhaque para ele e vira o corpo num movimento pouco gracioso, tropeça em si mesma, cai na sarjeta. A fivela dourada do tornozelo esquerdo rompida revela a marca do inchaço que eu não tinha percebido antes. Ela ergue o corpo sujo sem a ajuda de ninguém, se senta na calçada, troca as sandálias inacreditáveis pelo par dos chinelos de dedo mais banais que a cidade já viu, tirados da bolsa estúpida de supermercado enquanto ela se ajeitava em cima dos vestígios urbanos dos ratos e das baratas da noite escura e invisível.
Ali, de chinelos, os pés de unhas pintadas começam a fazer sentido naquele corpo de cinquenta e poucos anos e roupas fuleiras, os cabelos mal arrumados cabem na cabeça de alguém que viaja de ônibus pelos confins da cidade quente, o braile varicoso das pernas, a névoa cansada dos olhos enrugados, sacolas ridículas e óculos baratos. Os sapatos fascinantes são jogados na sacola colorida sem sombra de reflexão, o desenho das panturrilhas encarapitadas sobre centímetros de saltos aveludados é desfeito na platitude rasteira das havaianas falsas. A estranheza está soterrada pelo comum, e eu ali, incrédula, sem saber o que fazer da figura bizarra e disforme que se despe da graça insólita para pisar de novo a terra triste do cotidiano.
A mulher comum levantará da calçada e para atravessar o prolongamento da Azevedo em direção da rua Bahia. O cheiro de alcatrão se misturará ao petricor quando a chuva desabar sobre a cidade, o calor de janeiro mal contido entre as pedras e o asfalto finalmente volátil no inefável fragrante dos aromas telúricos, eu abrirei a lata de coca zero e refarei meus passos de volta ao apartamento.
AMEI ESTE TEXTO!